domingo, 24 de abril de 2011

I HOMILIA SOBRE A DORMIÇÃO, 11-14


Ó Mãe de Deus, sempre virgem, a tua sagrada partida deste mundo é verdadeiramente uma passagem, uma entrada na morada de Deus. Saindo deste mundo material, entras numa “pátria melhor” (Heb. 11, 16). O céu acolheu com alegria a tua alma: “Quem é esta, que surge como a aurora, bela como a lua, brilhante como o sol?” (Cant. 6, 10) “O rei introduziu-te nos seus aposentos” (Cant. 1, 4) e os anjos glorificam aquela que é a Mãe do seu próprio Senhor, por natureza e em verdade, segundo o plano de Deus. […]

Os apóstolos levaram o teu corpo sem mancha, o teu corpo, verdadeira arca da aliança, e depositaram-no no seu santo túmulo. E aí, como que passando outro Jordão, tu chegaste á verdadeira Terra prometida, á “Jerusalém lá do alto” (Gal. 4, 26), de que Deus é arquitecto e construtor. Porque a tua alma não desceu “á habitação dos mortos”, nem “a tua carne conheceu a decomposição” (Act. 2, 31; Sl. 15, 10). O teu corpo puríssimo, sem mácula, não foi abandonado á terra, antes foste elevada até à morada do Reino dos Céus, tu, a Rainha, a Soberana, a Senhora, a Mãe de Deus, a verdadeira Theotokos.

Hoje aproximamo-nos de ti, a nossa Rainha, Mãe de Deus e Virgem; voltamos a nossa alma para a esperança que és para nós. […] Queremos honrar-te com “salmos, hinos e cânticos espirituais” (Ef. 5, 19). Ao honrar a serva, exprimimos a nossa ligação ao nosso Senhor comum. […] Lança os teus olhos sobre nós, ó Rainha, Mãe do nosso bom Soberano; guia o nosso caminho até ao porto sem tempestades do desejo bom de Deus.

S. João Damasceno

domingo, 6 de fevereiro de 2011

MARIA, “MÃE DE DEUS”


15. Esta unicidade da pessoa em Cristo se actuou e foi perfeita não depois do parto virginal, mas no próprio seio da Virgem. Portanto, devemos atender com todo cuidado a professar não somente que Cristo é um, mas que sempre foi um. Seria uma blasfêmia intolerável sustentar que agora Cristo é um, mas que durante um determinado período de tempo existiram dois: um Cristo depois do baptismo; dois, entretanto, no momento do nascimento. Podemos evitar assim tão grande sacrilégio apenas se cremos que o homem se uniu a Cristo na unidade da pessoa já e desde o seio materno, no mesmo instante da concepção virginal, e não no momento da ascensão ou da ressurreição, ou no momento do baptismo. Em virtude desta unidade da pessoa se atribui indiferentemente e de maneira indistinta ao homem o que é próprio de Deus, e a Deus o que é próprio da carne. Por inspiração divina foi escrito que o Filho do homem baixou do céu e que o Senhor da majestade foi crucificado na terra. Assim nós dizemos que o Verbo de Deus foi feito, que a Sabedoria mesma de Deus foi aperfeiçoada, que a sua ciência foi criada, quando é a carne do Senhor que foi feita, criada, como foi predicto que as suas mãos e os seus pés seriam traspassados. Por causa desta unidade da pessoa e em razão deste mesmo mistério, é perfeitamente católico crer que, quando nasceu a carne do Verbo de uma Mãe incontaminada, foi o mesmo Deus Verbo quem nasceu de uma Virgem. Negá-lo seria uma grande impiedade. Ninguém, pois, pretenda jamais privar Maria Santíssima do privilégio desta graça divina e de uma glória tão especial. Pelo querer determinado do Senhor, Deus nosso e Filho seu, devemos proclamá-la com toda verdade e acerto Theotokos, Mãe de Deus. Não, certamente, o entendendo no sentido de uma heresia ímpia, a qual sustenta que Maria pode ser dita Mãe de Deus só de nome, enquanto que engendrou um homem que depois se converteu em Deus; ao modo como usamos comumente a expressão: mãe de um sacerdote ou mãe de um bispo, não porque estas mulheres tenham engendrado um presbítero ou bispo, mas porque puseram no mundo homens que depois se fizeram sacerdotes ou bispos. Não neste sentido, repito, Maria Santíssima é Mãe de Deus, mas, como se disse antes, porque no seu sagrado seio se realizou o mistério sacrossanto pelo qual, em razão de uma particular e única unidade da pessoa, o Verbo é carne na carne, e o homem é Deus em Deus.

"COMMONITORIUM"


São Vicente de Lerins

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

HOMILIA SOBRE A DORMIÇÃO DA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS, A BEM AVENTURADA VIRGEM MARIA

Quem ama ardentemente alguma coisa costuma trazer o seu nome nos lábios e nela pensar noite e dia. Não se me censure, pois, se pronuncio este terceiro panegírico da Mãe do meu Deus, como oferenda em honra da sua partida. Isso não será favor para ela mas servirá a mim mesmo e a vós, aqui presentes - divina e santa assembléia - como um manjar salutar que, nesta noite sagrada, satisfaça o nosso gosto espiritual. Estamos sofrendo, como sabeis, de penúria de alimentos. Assim, improviso a refeição; se não é sumptuosa nem digna daquilo que no-Ia inspira, possa ao menos acalmar-nos a fome. Sim, não é Maria que precisa de elogios, nós é que precisamos da sua glória. Um ser glorificado, que glória pode receber ainda? A fonte da luz, como será iluminada ainda? É pois para nós mesmos que fazemos a coroa. "Vivo eu, diz o Senhor, e glorificarei os que me glorificam" . (2 Sm 2, 30)

O vinho agrada sem dúvida, é deliciosa bebida, e o pão alimento nutritivo: um alegra, o outro fortifica o coração do homem (Sl 104, 15). Mas que existe de mais suave do que a Mãe de meu Deus? Ela cativou o meu espírito, ela reina sobre a minha palavra, dia e noite a sua imagem me é presente. Mãe do Verbo, dá-me de que falar! Filha de mãe estéril, torna fecundas as almas estéreis! Eis aquela cuja a festa celebramos hoje na sua santa e divina Assunção.

Acorrei, pois, e subamos a montanha mística. Ultrapassando as imagens da vida presente e da matéria, penetrando na treva divina e incompreensível, ingressando na luz de Deus, celebremos o seu infinito poder. Aquele que, da sua transcendência super-essencial e imaterial, desceu ao seio virgíneo para ser concebido e se encarnar, sem deixar o seio do Pai; aquele que através da Paixão marchou voluntariamente para a morte, conquistando pela morte a imortalidade e voltando ao Pai; como não pôde ele atrair ao Pai sua Mãe segundo a carne? como não elevaria da terra ao céu aquela que fora um verdadeiro céu sobre a terra?

Hoje a escada espiritual e viva, pela qual o Altíssimo desceu, se fez visível e conversou entre os homens (Baruc 3, 38), ei-la que sobe, pelos degraus da morte, da terra ao céu.

Hoje a mesa terrestre que, sem núpcias, trouxera o pão celeste da vida e a brasa da divindade, foi levada da terra aos céus, e para a Porta oriental, para a Porta de Deus, se ergueram as portas do céu.

Hoje, da Jerusalém terrestre, a Cidade viva de Deus foi conduzida á Jerusalém do alto; aquela que concebera como seu primogênito e unigênito o Primogênito de toda a criatura e o Unigênito do Pai, vem habitar na Igreja das primícias (Hb 12, 23); a arca do Senhor, viva e racional, é transportada ao repouso do seu Filho (Sl 132, 8).

As portas do paraíso se abrem para acolher a terra portadora de Deus, onde germinou a árvore da vida eterna, redentora da desobediência de Eva e da morte infligida a Adão. É o Cristo, causa da vida universal, quem recebe a gruta escondida, a montanha não trabalhada, donde se destacou, sem intervenção humana, a pedra que enche a terra.

Aquela que foi o leito nupcial onde se deu a divina encarnação do Verbo, veio repousar num túmulo glorioso, como em tálamo nupcial, para de lá se elevar até á câmara das núpcias celestes, onde reina em plena luz com o seu Filho e seu Deus, deixando-nos também como lugar de núpcias o seu túmulo sobre a terra. Lugar de núpcias, esse túmulo? Sim, e o mais esplendoroso de todos, a refulgir não por revérberos de ouro, de prata ou de gemas, porém pela divina luz, irradiação de Espírito Santo. Proporciona, não uma união conjugal aos esposos da terra, mas a vida santa ás almas que se prendem pelos laços do Espírito, proporciona uma condição junto de Deus, melhor e mais suave que outra qualquer.

Seu túmulo é mais gracioso do que o Éden: neste, sem querermos repetir tudo o que lá se passou, houve a sedução do inimigo, a sua mentira apresentada como conselho amigo, a fraqueza de Eva, a sua credulidade, o engodo - doce e amargo - ao qual o seu espírito se deixou prender e pelo qual em seguida aliciou o marido; a desobediência, a expulsão, a morte, mas - para não trazermos com tais lembranças assunto de tristeza á nossa festa - houve o túmulo que elevou ao céu o corpo de um mortal, ao contrário daquele primeiro jardim, que derrubou do céu o nosso primeiro pai. Pois não foi ali que o homem, feito à imagem divina, ouviu a sentença: "tu és terra e em terra te hás de tornar"? (Gn 3, 19)

O túmulo de Maria, mais precioso que o antigo tabernáculo, encerrou o candelabro espiritual e vivo, brilhante da divina luz, a mesa portadora da vida, que recebeu, não os pães da proposição, mas o pão celeste, não o fogo material mas o fogo imaterial da divindade.

Esse túmulo é mais feliz que a arca mosaica, pois teve por partilha a verdade, já não as sombras e as figuras; acolheu a urna áurea do maná celeste, a mesa viva do Verbo encarnado por obra do Espírito Santo, dedo omnipotente de Deus, Verbo subsistente; acolheu o altar dos perfumes, a brasa divina que aromatizou toda a Criação.

Fujam portanto os demónios, gemam os míseros nestorianos - como outrora os egípcios - com o seu chefe, o novo faraó, o cruel flagelo, o tirano, pois foram engolidos pelo abismo da blasfêmia. Nós, porém, salvos, que atravessamos a pé enxuto o mar da impiedade, cantemos á Mãe de Deus o canto do Êxodo. Miriam, que é a Igreja, tome nas mãos o tamborim e entoe o hino de festa; saiam as jovens do Israel espiritual com tamborins e coros (Ex 15, 20), exultando de alegria! Que os reis da terra, os juízes e os príncipes, os jovens e as virgens, os velhos e as crianças, celebrem a Mãe de Deus! Que reuniões e discursos de toda espécie, raças e povos na diversidade das suas línguas, componham um cântico novo! Que o ar ressoe de flautas e trombetas espirituais, inaugurando com brilho de fogos o dia da salvação! Alegrai-vos, ó céus, e vós, nuvens, fazei chover a alegria! Saltai, novilhos do rebanho eleito, apóstolos divinos que, como montanhas altas e sublimes, aspirais ás mais altas contemplações; e vós, também, ó cordeiros de Deus, povo santo, filhos da Igreja, que pelo desejo vos alçais como colinas até as altas montanhas!

Mas então? Morreu a fonte da vida, a Mãe do meu Senhor? Sim, era preciso que o ser formado da terra à terra voltasse, para dali subir ao céu, recebendo o dom da vida perfeita e pura a partir da terra, após ter-lhe entregue o seu corpo. Era preciso que, como o ouro no crisol, a carne rejeitasse o peso da mortalidade e se tornasse, pela morte, incorruptível, pura, e assim ressuscitasse do túmulo.

Começa hoje para Maria uma segunda existência, recebida daquele que a fez nascer para a primeira, como também ela mesma dera uma segunda existência - a vida corpórea - áquele, cuja primeira existência, a eterna, não teve começo no tempo, embora principiada no Pai como na sua divina causa.

Alegra-te, Sião, montanha divina e santa, onde habitou a outra montanha divina, a montanha vivente, a nova Betel, ungida na pedra, a natureza humana ungida pela divindade. De ti, como de um jardim de oliveiras, e Filho se elevou ás celestes alturas. Que uma nuvem se componha, universal e cósmica, e que as asas dos ventos tragam os apóstolos dos confins da terra até Sião! [1] Quem são aqueles que, como nuvens e águias, voam para o corpo - fonte de toda a ressurreição, a fim de cultuar a Mãe de Deus? Quem é a que sobe, na flor da sua alvura, toda bela, brilhante como o sol? Que cantem as cítaras do Espírito, isto é, as línguas dos apóstolos! Que ressoem os címbalos, isto é, os arautos eminentes da palavra de Deus! Que esse vaso de eleição, Hieroteu [2], santificado pelo Espírito Santo e pela união divina capacitado a sofrer as realidades divinas, seja arrebatado do corpo, e em transportes de fervor entoe os seus hinos! Que todas as nações aplaudam e celebrem a Mãe de Deus! Que os anjos prestem culto ao corpo mortal!

Filhas de Jerusalém, feitas cortejo da Rainha, e virgens suas companheiras, ide com ela até ao Esposo, levai-a à direita do Senhor! Desce, ó Soberano, vem pagar á tua Mãe a dívida que ela merece por te haver nutrido! Abre as tuas mãos divinas e acolhe a alma da tua mãe, tu que sobre a cruz entregaste o espírito ás mãos do Pai! Dirige-lhe um suave apelo: vem, ó formosa, ó bem-amada, mais resplandecente pela virgindade do que o sol, tu me partilhaste teus bens, vem agora gozar junto de mim o que te pertence!

Aproxima-te, ó Mãe, do teu Filho, aproxima-te e participa do poder régio daquele que, nascido de ti, contigo viveu na pobreza! Ascende, ó Soberana, ascende! Já não vale a ordem dada a Moisés: "Sobe e morre..." (Dn 31, 48) Morre, sim, mas eleva-te pela própria morte!

Entrega a tua alma ás mãos do teu Filho e devolve á terra o que é da terra, pois mesmo isso será carregado por ti.

Erguei os vossos olhos, Povo de Deus, alçai o vosso olhar! Eis em Sião a arca do Senhor Deus dos exércitos, á qual vieram pessoalmente prestar assistência os apóstolos, tributando o seu derradeiro culto ao corpo que foi princípio de vida e receptáculo de Deus. Imaterialmente e invisivelmente os anjos o cercam com respeito, como servidores da Mãe do seu Senhor. O próprio Senhor lá está, omnipresente, ele que tudo enche e abraça, que na verdade não está em lugar algum porque nele tudo está como na causa que tudo criou e tudo encerra.

Eis a Virgem, filha de Adão e Mãe de Deus: por causa de Adão entrega o seu corpo à terra, mas por causa do seu Filho eleva a alma aos tabernáculos celestes! Santificada seja a Cidade santa, que acolhe mais essa bênção eterna! Que os anjos precedam a passagem da divina morada e preparem o seu túmulo, que o fulgor do Espírito a decore! Preparai aromas para embalsamar o corpo imaculado e repleto de delicioso perfume! Desça uma onda pura a fim de haurir a bênção da fonte imaculada da bênção! Alegre-se a terra de receber o corpo e exulte o espaço pela ascensão do espírito! Soprem as brisas, suaves como o orvalho e cheias de graça! Que toda a criação celebre a subida da Mãe de Deus: os grupos de jovens na sua alegria, a boca dos oradores nos seus panegíricos, o coração dos sábios nas suas dissertações sobre essa maravilha, os velhos de veneráveis cãs nas suas contemplações. Que todas as criaturas se associem nessa homenagem, que ainda assim não seria suficiente. Todos, pois, deixemos em espírito este mundo com aquela que dele parte. Sim, todos, pelo fervor do coração, desçamos com a que desce á sepultura e ali nos coloquemos. Cantemos hinos sacros e nossas melodias se inspirem nas palavras: "Avé, cheia de graça, o Senhor é contigo!" Permanece na alegria, tu que foste predestinada a ser Mãe de Deus. Permanece na alegria, tu que foste eleita antes dos séculos por um desígnio de Deus, germe divino da terra, habitação do fogo celeste, obra-prima do Espírito Santo, fonte de água viva, paraíso da árvore da vida, ramo vivo que portas o divino fruto, donde fluem o néctar e a ambrosia, rio de aromas do Espírito, terra produtora da divina espiga, rosa resplandecente da virgindade, donde emana o perfume da graça, lírio da veste real, ovelha que geras o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, instrumento de nossa salvação, superior às potências angélicas, serva e Mãe!

Vinde, enfileiremo-nos em torno do túmulo imaculado para dali sorvermos a divina graça! Vinde, abracemos em espírito o corpo virginal. Entremos no sepulcro e morramos nele, rejeitando as paixões da carne, vivendo uma vida sem concupiscência e sem mácula. Escutemos os hinos divinos, cantados imaterialmente pelos anjos. Entremos para adorar, aprendamos a conhecer o mistério inaudito: como esse corpo foi elevado ás alturas, arrebatado ao céu, como a Virgem foi posta junto do seu Filho acima dos coros angélicos, de sorte que nada se interpusesse entre a Mãe e Filho.

Tal é, depois de outros dois, o terceiro discurso que compus acerca da tua partida, ó Mãe de Deus, em honra e amor da Trindade, cuja cooperadora foste, por benevolência do Pai e por virtude do Espírito, quando recebeste o Verbo sem princípio, a Sabedoria omnipotente, a Força de Deus. Aceita, pois, a minha boa vontade, maior do que a minha capacidade, e dá-me a salvação, a libertação das paixões da alma, o alívio das doenças dos corpos, a salvação das dificuldades, a vida de paz, a luz do Espírito. Inflama o nosso amor pelo teu Filho, regula a nossa conduta sobre o que lhe apraz, a fim de que, na posse da bem-aventurança do alto, e vendo-te refulgir com a glória do teu Filho, façamos ressoar hinos sagrados, na eterna alegria, na assembléia dos que celebram, em festa digna do Espírito, aquele que por ti opera a nossa salvação, o Cristo Filho de Deus e nosso Deus, a quem pertence a glória e o poder, com o Pai sem princípio e o Espírito Santo e vivificador, agora e sempre pelos séculos. Amém.

São João Damasceno


NOTAS:

1 - O autor passa a aludir aqui a certa tradição, segundo a qual Nossa Senhora, ao morrer em Jerusalém, teve à sua volta os apóstolos.

2. O autor pensa em Hieroteu, apresentado como mestre de Dionísio em seu livro "Os Nomes Divinos".

FONTE:

Gomes, Folch. "Antologia dos Santos Padres". Ed. Paulinas, 1979.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

OS ÚLTIMOS DIAS DA VIRGEM MARIA


«Voltando-se o Senhor, viu o discípulo a quem amava
e lhe disse, a respeito de Maria: 'Eis aí tua Mãe';
e então à Mãe: 'Eis aí teu filho'» (Jo 19,26).

Ora, se Maria tivesse filhos, ou se o seu esposo ainda estivesse vivo, por que o Senhor a confiaria a João, ou João a ela? Mas, e também por que não a confiou a Pedro, a André, a Mateus, a Bartolomeu? Fê-lo a João, por causa da sua virgindade. A ele foi que disse: "Eis aí tua mãe".

Não sendo mãe corporal de João, o Senhor queria significar ser ela a mãe ou o princípio da virgindade: dela procedeu a Vida. Nesse intuito dirigiu-se a João, que era estranho, que não era parente, a fim de indicar que a sua Mãe devia ser honrada. Dela, na verdade, o Senhor nascera quanto ao corpo; sua encarnação não fora aparente, mas real. E se ela não fosse verdadeiramente sua mãe, aquela de quem recebera a carne, e que o dera á luz, não se preocuparia tanto em recomendá-la como a sempre Virgem. Sendo sua Mãe, não admitia mancha alguma na sua honra e no admirável vaso de seu corpo.

Mas prossegue o Evangelho: "e a partir daquele momento, o discípulo a levou consigo".

Ora, se ela tivesse esposo, casa e filhos, iria para o que era seu, não para o alheio.

Temo, porém, que isso de que falamos venha a ser deturpado por alguns, no sentido de que pareça estimulá-los a manter as mulheres que dizem companheiras e diletas - coisa que inventaram com péssima intenção.

Com efeito, ali (no caso de João e da Santíssima Virgem) tudo foi disposto por uma providência especial, que tornava a situação desligada das obrigações comuns que, conforme a lei de Deus, se devem observar. Aliás, depois daquele momento em que João a levou consigo, não permaneceu ela longamente em sua casa.

Se alguém julgar que estamos laborando em erro, pode consultar a Sagrada Escritura, onde não achará a morte de Maria, nem se foi morta ou não, se foi sepultada ou não. E quando João partiu para a Ásia, em parte alguma está dito que tenha levado consigo a santa Virgem: sobre isso a Escritura silencia totalmente, o que penso ocorrer por causa da grandeza transcendente do prodígio, a fim de não induzir maior assombro às mentes.

Temo falar nisso e procuro impor-me silêncio a este respeito. Porque não sei, na verdade, se podem achar indicações, ainda que obscuras, sobre a incerta morte da santíssima e muito bem-aventurada Virgem. Pois de um lado temos a palavra, proferida sobre ela: "uma espada transpassará a tua alma, para que sejam revelados os pensamentos de muitos corações" (Lc 2,35). De outro lado, todavia, lemos no Apocalipse de João (Ap 12), que o dragão avançou contra a mulher, quando dera á luz um varão; e que foram dadas a ela asas de águia, de modo a ser transportada para o deserto, onde o dragão não a alcançasse. Isso pode ter-se realizado nela. Embora eu não o afirme totalmente. Nem digo que tenha ficado imortal nem posso afirmar que tenha morrido. A Sagrada Escritura, transcendendo aqui a capacidade da mente humana, deixa a coisa na incerteza, em atenção ao Vaso exímio e excelente, de sorte que ninguém lhe atribua alguma sordidez própria da carne. Portanto, se ela morreu, não sabemos. E mesmo que tivesse sido sepultada, jamais teve comércio carnal: longe de nós essa blasfêmia! Quem ousaria, em furor de loucura, impor esse opróbrio à santa Virgem, erguendo contra ela a voz, abrindo a boca para uma afirmação assim nefanda, ao invés de lhe entoar louvores? quem iria desonrar assim o Vaso digno de toda honra?

Foi a ela que prefigurou Eva, ao receber o título, um tanto misterioso, de mãe dos viventes (Gn 3,20). Sim, porque o recebeu depois de ter escutado a palavra: "tu és terra e à terra hás de tornar", isto é, depois do pecado.

Numa consideração exterior e aparente, dir-se-ia que de Eva derivou a vida de todo o gênero humano, sobre a terra. Mas na verdade é de Maria que deriva a verdadeira vida para o mundo, é ela que dá á luz o Vivente, ela a Mãe dos viventes. Portanto, o título de "mãe dos viventes" queria indicar, na sombra e na figura, Maria.

Com efeito, não se aplica, porventura, às duas mulheres aquela palavra: "quem deu a sabedoria á mulher, quem lhe deu a ciência de tecer?" (Jo 18, 36)

Eva, a primeira mulher sábia, teceu vestes visíveis para Adão, a quem despojara. Fora condenada ao trabalho. Já que tinha sido responsável pela nudez dele, precisou confeccionar a veste que cobrisse essa nudez externa, que cobrisse o corpo exposto aos sentidos.

A Maria, porém, coube vestir o cordeiro e ovelha; com cujo esplendor e glória, como se fora uma lã, foi confeccionada sabiamente para nós uma veste, na virtude de sua imortalidade.

Outra coisa, além disso, pode considerar-se em ambas - Eva e Maria - digna de admiração. Eva trouxe ao gênero humano uma causa de morte, por ela a morte entrou no orbe da terra; Maria trouxe uma causa de vida, por ela a Vida se estendeu a nós. Pois o Filho de Deus veio a este mundo, para que “onde abundara o delito, superabundasse a graça" (Rm 5,20). Onde a morte havia chegado, chegou a vida, para tomar o seu lugar; e aquele mesmo que nasceu da mulher para ser a nossa Vida haveria de expulsar a morte, introduzida pela mulher.

Quando ainda virgem, no paraíso, Eva desagradou a Deus, pela sua desobediência. Por isso mesmo, emanou da Virgem a obediência própria da graça, depois que se anunciou o advento do Verbo revestido de corpo, o advento da eterna Vida do Céu.

Fonte: GOMES, C. F. Antologia dos Santos Padres. Ed. Paulinas - São Paulo, 1979

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

DISCURSO PRONUNCIADO NO CONCÍLIO DE ÉFESO SOBRE MARIA


Salvé, cidade de Éfeso, mais formosa que os mares, porque em vez dos portos da terra, marcaram encontro em ti os que são portos do céu! Salvé, honra desta região asiática semeada por todos os lados de templos, como preciosas jóias, e consagrada, no presente, pelos benditos pés de muitos santos Padres e Patriarcas!

Com a sua vinda, cumularam-te de toda a bênção, porque onde eles se congregam, aumenta e multiplica-se a santidade: religiosos fiéis, anjos da terra, afugentam eles, com a sua presença, todo o satânico poder e toda a afeição pagã. Eles, repetimos, confundem toda a heresia e são glórias da nossa fé ortodoxa.

Salvé, ó bem-aventurado João, apóstolo e evangelista, glória da virgindade, mestre da honestidade. Salvé, ó vaso puríssimo da temperança, a ti ó virgem, confiou, na cruz, nosso Senhor Jesus Cristo a Mãe de Deus, sempre virgem!

Salvé, ó Maria, Mãe de Deus, virgem e mãe, estrela e vaso de eleição! Salvé, Maria, virgem, mãe e serva: virgem, na verdade, por virtude daquele que nasceu de ti; mãe por virtude daquele que cobriste com panos e nutriste no teu seio; serva, por aquele que amou de servo a forma! Como Rei, quis entrar na tua cidade, no teu seio, e saiu quando lhe aprouve, cerrando para sempre a sua porta, porque concebeste sem concurso de varão, e foi divino o teu parto. Salvé, Maria, templo onde mora Deus, templo santo, como o chama o profeta Davi, quando diz: “O teu templo é santo e admirável na sua justiça” (Sl 64). Salvé, Maria, criatura mais preciosa da criação; salvé, Maria, puríssima pomba; salvé, Maria, lâmpada inextinguível; salvé, porque de ti nasceu o sol da Justiça! Salvé, Maria, morada da infinitude, que encerraste no teu seio o Deus infinito, o Verbo unigênito, produzindo sem arado e sem semente a espiga incorruptível! Salvé, Maria, Mãe de Deus, aclamada pelos profetas, bendita pelos pastores, quando com os anjos cantaram o sublime hino de Belém: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade” (Lc 2,14). Salvé, Maria, Mãe de Deus, alegria dos anjos, júbilo dos arcanjos que te glorificam no céu! Salvé, Maria, Mãe de Deus: por ti adoraram a Cristo os Magos guiados pela estrela do Oriente; salvé, Maria, Mãe de Deus, honra dos apóstolos! Salvé, Maria, Mãe de Deus, por quem João Batista, ainda no seio da sua mãe exultou de alegria, adorando como luzeiro a perene luz! Salvé, Maria, Mãe de Deus, que trouxeste ao mundo graça inefável, da qual diz são Paulo: “apareceu a todos os homens a graça de Deus salvador” (Tt 2, 1). Salvé, Maria, Mãe de Deus, que fizeste brilhar no mundo aquele que é luz verdadeira, a nosso Senhor Jesus Cristo, que diz no seu Evangelho: “eu sou a luz do mundo!” (Jo 8,12). Deus te salve, Mãe de Deus, que iluminaste os que estavam nas trevas e sombras da morte; porque o povo que jazia nas trevas viu uma grande luz (Is 9, 2), uma luz não outra senão Jesus Cristo nosso Senhor, luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo (Jo 1,9). Salvé, Maria, Mãe de Deus, por quem se apregoa nos Evangelhos: “bendito o que vem em nome do Senhor!” (Mt 21,9), por quem se encheram de igrejas nossas cidades, campos e vilas ortodoxas! Salvé, Maria, Mãe de Deus, por quem veio ao mundo o vencedor da morte e o destruidor do inferno! Salvé, Maria, Mãe de Deus, por quem veio ao mundo o autor da criação e o restaurador das criaturas, o Rei dos céus! Salvé, Maria, Mãe de Deus, por quem floresceu e refulgiu o brilho da ressurreição! Salvé, Maria, Mãe de Deus, por quem luziu o sublime baptismo de santidade no Jordão! Salvé, Maria, Mãe de Deus, por quem o Jordão e o Baptista foram santificados e o demónio foi destronado! Salvé, Maria, Mãe de Deus, por quem é salvo todo o espírito fiel! Salvé, Maria, Mãe de Deus, – pois acalmaste e serenaste os mares para que pudessem os nossos irmãos cooperadores e pais e defensores da fé, serem conduzidos, com alegria e júbilo espiritual, a esta assembléia de entusiásticos defensores de tua honra!

Também aquele que, levando cartas de perseguição, sendo derrubado pela luz do céu no caminho de Damasco, falou sobre ti e confirmou para o mundo a fé na Trindade consubstancial, de um só Senhor, de um só batismo; de um só Pai, um só Filho, um só Espírito Santo; da substância inseparável e simplicíssima; da divindade incompreensível do Senhor Deus de Deus, Luz de Luz, Esplendor da Glória, que nasceu de Maria Virgem, conforme o anúncio do Arcanjo: “Avé, cheia de graça, o Senhor é contigo, o Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra, e por isso o santo que de ti nascer será chamado Filho de Deus vivo” (Lc 1,35). Não somente o sabemos pelo arcanjo Gabriel; também Davi, no vaticínio que canta diariamente a Igreja, nos diz: “O Senhor me disse: és meu filho; no dia de hoje te gerei” ( Sl 2,7). Já o sábio Isaías, filho do profeta Amós, profeta nascido de profeta, o predissera: “Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho e seu nome será Emanuel, que significa Deus conosco” (Mt 1,23).

Por isso todos os que formos fieis às Escrituras, seguindo os caminhos de Paulo, ouvindo as vozes dos profetas clamar-te-ão Bem aventurada.. Todos os que formos seguidores dos Evangelhos permaneceremos como disse o profeta: seremos como “oliveira fértil na casa de Deus” (Sl 51), glorificando a Deus Pai Todo Poderoso, a seu Filho UNIGÊNITO que nasceu de Maria e ao vivificante Espírito Santo, que se comunica a todos na vida; submissos aos fidelíssimos imperadores, honrando as rainhas, discretas e santas virgens, no seu amor à fé ortodoxa de Cristo de Jesus, nosso Senhor a quem se deve a glória pelos séculos dos séculos . Amém.

São Cirilo de Alexandria

Fonte: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/pais_da_igreja/s_cirilo_de_alexandria_discurso_sobre_maria.html

domingo, 16 de janeiro de 2011

ORAÇÃO MARIANA - SÉC. II


Sob a tua misericórdia nos refugiamos,
Mãe de Deus!

Não deixes de considerar as
nossas súplicas
nas nossas dificuldades.

Mas livrai-nos do perigo,
única casta e bendita!

Tradução: D. Estêvão Bettencourt
Fonte: revista Pergunte e Responderemos nº 457

Em 1917 a Biblioteca John Ryland, de Manchester (Inglaterra) adquiriu no Egito um pequeno fragmento de papiro de 18 x 9,4 cm (Ryl. III, 470), cujo o conteúdo foi identificado em 1939; é o texto de uma oração dirigida a Maria Santíssima invocada como Theotókos (= Mãe de Deus) no séc. III. Quando em 431 (séc. V) o Concílio de Éfeso proclamou Maria Theotókos, fez eco a uma tradição cujo o primeiro termo conhecido remonta a Orígenes (243 dC).